Neste ano, o Dia Mundial da Alimentação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, celebrado em 16 de outubro, teve como tema De mãos dadas por melhores alimentos e um futuro melhor. No Brasil, a data foi ofuscada pelo lamentável episódio da contaminação de bebidas pelo metanol.
Nos últimos meses, a mídia foi pródiga em notícias, manifestações, comentários sobre a questão. Surgiram dados já comprovados anteriormente e, outros, surpreendentes para os consumidores: a existência de estabelecimentos clandestinos em número exorbitante; a constância no mercado de bebidas a preços muito baixos, refletindo fraude habitual; as empresas idôneas, tentando se defender, explicando ao público que trabalham corretamente, dentro das normas sanitárias e tecnológicas; e, o que chama a atenção, o silêncio sepulcral de algumas autoridades responsáveis pela fiscalização.
A Câmara dos Deputados, mesmo sem muita informação, decidiu transitar com uma proposta, equiparando a adulteração de bebidas a crime hediondo. O ministro da Saúde, preocupado com o crescente número de casos e óbitos, determinou medidas urgentes para diagnosticar e identificar usuários atingidos, inclusive providenciando a compra de antídoto à ingestão de metanol.
A Associação Brasileira de Bebidas veio a público, defendendo o fortalecimento de ações de repressão especializadas para desarticular as redes irregulares de distribuição; a polícia empreendendo todos os esforços e recursos disponíveis para identificar as origens da adulteração e responsabilizar criminalmente seus autores. Dentre variados comentários sobre o assunto, chamou a atenção o editorial publicado pelo Estadão, em 4 de outubro, no qual o jornal salienta a responsabilidade do Estado pela fiscalização permanente dos alimentos, assim como a educação e a punição dos atores envolvidos. Também adverte sobre a negligência da fiscalização e da impunidade com os envolvidos.
Nesse contexto, está faltando a manifestação de um ator, a fiscalização, ou seja, a palavra oficial e completa das instituições governamentais responsáveis pela segurança sanitária, tecnológica e econômica dos alimentos e bebidas. E por que o silêncio, com raras exceções?
Porque não existe clareza, malgrado toda a legislação sanitária em vigor, acerca das responsabilidades pela fiscalização de bebidas (originária do Ministério da Agricultura e Pecuária) e por suas extensões nos estados e municípios. Clareza das responsabilidades e efetividade, competência e regularidade das ações de fiscalização. Ou seja, ações de prevenção, que garantam a segurança sanitária dos alimentos destinados à alimentação humana (e/ou animal, já que estão associados).
Com certeza, aqui reside o “calcanhar de Aquiles” dos alimentos produzidos pelo Brasil. Sem dúvida, tem-se ilhas de excelência que denotam grande evolução do agronegócio, marcantemente para os alimentos exportados, como a carne bovina e a de frango, onde a sanidade é levada a sério, caso contrário, perde-se em competição. O “calcanhar de Aquiles” se encontra no mercado interno, onde o consumidor não encontra, determinadas vezes, alimentos verdadeiramente confiáveis, tendo em vista a precariedade ou inexistência de serviços constantes, regulares e competentes de fiscalização.
E o Brasil já marcou época em competência, por exemplo do MAPA, na fiscalização de carnes, especialmente aquelas destinadas à exportação, com um serviço de inspeção federal competente, sério, inflexível à clandestinidade. Deve-se lembrar e justiça se faça, da época da federalização dos serviços de inspeção sanitária de alimentos, quando foram autorizados a funcionar apenas empresas que se adequavam às normas sanitárias, fechando-se dezenas de outras, por sua precariedade no trabalho com alimentos.
Foi uma época áurea do serviço de inspeção federal, o qual, a posteriori, sofreu cortes de verba em sua estrutura, demora na abertura de concursos, para repor os agentes que se aposentavam, até chegar-se à atualidade, na qual, sem outras opções, oficializou-se o chamado autocontrole, ou seja, transfere-se à iniciativa privada a responsabilidade pela inspeção de alimentos, ficando o MAPA apenas com a incumbência da auditoria.
Mas, e a fiscalização nos estados e municípios? É grande, ainda, o número deles sem os serviços de inspeção estadual e os de inspeção municipal, embora o MAPA tente evoluir com a criação do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi), que tenta unificar as ações, para um melhor desempenho e proteção do consumidor. Transparece aqui o pouco interesse dos estados e municípios em montar serviços competentes para tal finalidade.
Na opinião de alguns políticos, o investimento é grande demais, para um pequeno retorno político, não obstante muito grande sua repercussão na saúde pública, segurança dos alimentos e garantias ao consumidor. Um exemplo? A cidade de São Paulo, a maior do Brasil, não tem, até hoje, um Serviço de Inspeção Municipal, que garanta aos consumidores alimentos produzidos e comercializados, no âmbito do município, de boa qualidade e com total segurança aos usuários.
Em poucas palavras, apesar de sua extensão, de 1.521.202 quilômetros quadrados e uma população que ultrapassa 20,7 milhões de pessoas, São Paulo não conta, até hoje, com o serviço, embora em alguns municípios da Região Metropolitana, como Santo André, tenha sido instituído há anos. Qual o motivo? Político, nenhum candidato à prefeitura, sequer algum vereador que liderasse a iniciativa, mostrou-se sensível à ideia, assim que assumiu, interessou-se pela causa de saúde pública e pela necessidade, embora muitos projetos tenham sido encaminhados, nas sucessivas legislaturas.
Portanto, a fraude está na razão inversa de um serviço competente de prevenção e, este, diretamente relacionado a uma fiscalização constante, competente, educativa (não policialesca e episódica). É o que garantirá alimentos seguros à população e coibirá de forma eficaz as fraudes, a clandestinidade, o crime de adulteração.
Nos países mais desenvolvidos e que têm uma cultura arraigada sobre a qualidade e segurança sanitária dos alimentos distribuídos à população, eleva-se esta questão à enésima potência, pois, em análise, trata-se de uma questão não só de segurança mas, sobretudo, de saúde pública e soberania nacional.
O Brasil, que se orgulha com justiça pela eficiência e manutenção do SUS, tem condições também de ter um sistema voltado aos alimentos de proteção e segurança sanitária, cuja atuação constante e proativa crie uma cultura, arraigada na população, nas empresas, no governo, que naturalmente garanta a higidez dos produtos alimentares e proteja diuturnamente o consumidor.
Não se discute, obviamente, que o Brasil marcou, nas últimas décadas, enorme avanço na área alimentar, tanto em capacidade de produção (veja-se o agronegócio!), quanto no controle de sua qualidade, tecnológica e sanitária. Parcela significativa de empresas, idôneas, grandes, médias ou pequenas, tem investido fortemente em qualidade, através de programas nacionais e, também, internacionais (BPF, APPCC, ISSO 22000. BPAF etc.), monitoradas pelo governo (Anvisa, MAPA, Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, serviços estaduais e municipais etc.) em busca do desafio de oferecer à população alimentos seguros e com qualidade sanitária e nutricional.
Porém isso não basta, pois grande parte das empresas, talvez a maioria entre as pequenas e médias, fica à margem dessa condição, oferecendo alimentos ao mercado sem as prerrogativas da qualidade necessária para garantir saúde ao consumidor. O que falta? Justamente um sistema nacional de sanidade alimentar, permanentemente municiado por técnicos e recursos, voltado à prevenção, à educação, à cultura, à política da produção e distribuição de alimentos nobres, de alta qualidade higienicossanitária e nutritiva dos alimentos.
O cultivo dessa cultura não pode ser obra somente do governo: deve ser incluída no consciente coletivo das empresas produtoras, nas distribuidoras, no mercado, na população em geral, ensinando-se as questões básicas às crianças, de tal sorte a manter uma tradição de produção e consumo de alimentos de alto nível. E, para tanto, é preciso contar-se com empresas de monitoramento da qualidade de alimentos, além das já existentes, algumas bastante competentes, que trabalhem com espírito coletivo, de elevada capacidade de análises, algumas inclusive sem fins lucrativos, como é o caso das norte-americanas AIB Internacional, FSNS (Food Safety Net Services) e EAS Consulting Group, cujos trabalhos são acessíveis em preços, não só aos grandes, mas também aos médios e pequenos produtores.
É, acima de tudo, uma questão de gestão dos serviços, alguns já instalados e, sobretudo, cultural, que deve impregnar todos os participantes do sistema, numa consciência coletiva de saúde pública, pois os alimentos são indispensáveis a esse propósito. É, enfim, a grande diferença que se vive, quando se enfrenta um problema como a fraude de bebidas pelo metanol (food fraud), que busca ganho econômico, e a defesa alimentar, que busca, entre outros objetivos, prevenir danos intencionais e ocasionais (food defense), no mais amplo sentido da prevenção.
(*) Por José Cezar Panetta, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP (Universidade de São Paulo).
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