A movimentação de tropas na fronteira entre Rússia e Ucrânia pôs o mundo em alerta. Num contexto mais recente, o conflito recupera disputas ocorridas em 2014, quando o território da Crimeia, península ucraniana, foi incorporado à Rússia. Há, no entanto, dimensões geopolíticas e históricas relacionadas ao confronto, que remontam à Guerra Fria. A Agência Brasil ouviu pesquisadores que explicam as raízes e os possíveis desdobramentos da situação no Leste Europeu.
“É uma questão basicamente de geopolítica, mexendo com o tabuleiro de xadrez da política internacional. É como se fosse um triângulo com três vértices: de um lado a Rússia, do outro lado os Estados Unidos e o terceiro vértice seria a Europa propriamente dita. E, no meio de toda esta confusão, está um país relativamente pequeno, que é a Ucrânia”, resume o professor aposentado de História Contemporânea Antônio Barbosa, da Universidade de Brasília (UnB).
Ele aponta que as movimentações de Vladimir Putin, presidente russo, têm a ver com o propósito de mostrar para o mundo que o país “continua no jogo das grandes potências”. Barbosa lembra que, com o fim da União Soviética, em 1991, nos anos que se seguiram, o poder mundial aparente estava concentrado nas mãos dos Estados Unidos. “Putin está conseguindo mostrar que, apesar de a União Soviética não existir mais, de ter perdido o controle sobre os países do Leste Europeu, a Rússia continua sendo uma grande potência, inclusive mantendo intacto o seu arsenal nuclear”, analisa.
O professor Maurício Santoro, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), concorda que “a causa última de todos esses conflitos envolvendo a Ucrânia é definir qual é a esfera de influência da Rússia, dos Estados Unidos e da União Europeia no Leste da Europa”. Ele lembra que, após o colapso da União Soviética, houve expansão da influência ocidental nos estados que orbitavam o governo comunista ou mesmo nas repúblicas soviéticas. “Elas passaram a fazer parte da União Europeia, da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], ou dos dois ao mesmo tempo.”
Santoro acrescenta que a Rússia coloca pressão nos países ocidentais por entender que os Estados Unidos passam por um período de instabilidade. “Há uma leitura, tanto por parte da Rússia quanto por parte da China, de que esse é um momento de declínio dos Estados Unidos, em que o governo americano tem se mostrado mais frágil e com maior dificuldade em alcançar os seus objetivos”, avalia. Ele cita questões relacionadas à pandemia como reflexo de fragilidade.
Barbosa também destaca o contexto interno norte-americano. “Se nós levarmos em consideração questões de ordem interna, a fragilidade no próprio Joe Biden [presidente norte-americano] e as condições do mundo hoje, os Estados Unidos estão numa posição nada confortável. Até porque qualquer decisão mais incisiva de Washington não necessita da concordância unânime da Europa”, avalia.
Santoro explica que a expansão da Otan é encarada pela Rússia como uma ameaça militar. “Uma ameaça para sua própria integridade territorial”, aponta. Para os russos, conforme explica o professor, a Ucrânia é um território com o qual eles podem impedir o avanço das forças militares ocidentais. Ele compara com os países bálticos — Letônia, Estônia e Lituânia — que foram incorporados ao tratado militar e à União Europeia. “Mas eles são países que historicamente tem uma relação forte com o resto da Europa, muito próxima ao Ocidente, em termos de comércio, em termos de cultura. Os russos não tinham como resistir.”
A situação é diferente na Ucrânia. “Basicamente a metade leste do país tem uma história muito ligada à Rússia e uma presença muito grande de pessoas que falam russo, com origem étnica russa, quer dizer os laços históricos ali realmente são todos voltados para a Rússia”, explica. A metade oeste, no entanto, tem uma história mais ligada ao Ocidente. “É um território que, em vários momentos da história, fez parte do império Habsburgo ou fez parte da Polônia. É outra cultura, outra tradição histórica, então a Ucrânia é, ela mesma, muito dividida com relação a para onde ele vai.”
Santoro lembra que os russos conseguiram manter também sua esfera de influência nas antigas repúblicas da Ásia Central, como Cazaquistão e Uzbequistão, e nos países do Cáucaso, como Geórgia e Azerbaijão.
Barbosa destaca que muitos países da Europa dependem do abastecimento de gás natural russo. “Na eventualidade de um conflito armado naquela região, a Rússia poderia suspender o fornecimento deste gás, que é vital. Um dos países que mais sofreria com isso é a Alemanha, o que talvez explique o fato de que, ao contrário do Reino Unido e ao contrário da França, a Alemanha, até o presente momento, não abriu a boca para contestar Putin”, destaca.
Santoro levanta um ponto de dúvida, no entanto, sobre o novo governo de Olaf Scholz, primeiro-ministro alemão que assumiu fazendo críticas à antecessora Angela Merkel por não dar atenção suficiente às questões de direitos humanos na Rússia e na China. “Até que ponto eles são capazes de alterar o que tem sido a política tradicional alemã”, questiona o professor da Uerj.
No caso do Reino Unido, Santoro destaca dois aspectos que fazem o país assumir postura mais bélica. “Um deles é porque o laço econômico não é tão forte, então eles podem se dar o luxo de um discurso mais duro. O outro é o momento político que o governo britânico [do primeiro-ministro Boris Johnson] enfrenta atualmente”, destaca.
O primeiro-ministro enfrenta crise política interna e tem sido pressionado a renunciar por conta de festas na sede do governo durante a pandemia de covid-19, infringindo regras do país. “Seria uma maneira de contrabalançar todas essas dificuldades no plano doméstico.”
Efeitos econômicos negativos devem ser o principal reflexo para o Brasil em caso de uma guerra de proporções mundiais no Leste Europeu. “É uma economia rigorosamente globalizada. Os efeitos vão se fazer sentir. Quer um exemplo? No preço do barril do petróleo. A Rússia é um dos três maiores produtores e exportadores de petróleo do mundo”, exemplifica Barbosa.
Santoro lembra que a região leste da Europa não é comercialmente relevante para o Brasil. “Nós não temos nenhum grande interesse nacional diretamente envolvido na Ucrânia, nessas disputas de fronteira. Agora nós somos afetados pelos impactos para a economia global de tudo que está acontecendo ali”, aponta. Para ele, o Brasil deve manter uma postura diplomática mediadora e de busca de soluções pacíficas.
O professor de Relações Internacionais, no entanto, levanta dois aspectos que podem mudar o cenário em relação à posição brasileira. Uma delas é o fato de que o Brasil voltou ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde o tema deverá ser debatido, o país terá que se posicionar. “A segunda razão é porque o Bolsonaro está de viagem marcada para a Rússia. Uma viagem que já tinha sido planejada antes do conflito atual, mas ele vai chegar na Rússia no momento de grandes tensões”, destaca.