De todos os compromissos do curso de Direito, as reuniões com o Grupo de Acadêmicos Indígenas, realizadas às sextas-feiras à tarde, talvez sejam as que Priscila Amorim mais tenha se dedicado ao longo dos cinco anos de graduação.
Diferente de quando está em sala de aula, lugar onde por muitas vezes teve de silenciar suas opiniões e a própria história, ali nos encontros semanais com estudantes de diferentes cursos e etnias indígenas ela ocupa o centro das discussões, ouve, é ouvida, resolve e compartilha seus conhecimentos com o grupo de, aproximadamente, 90 acadêmicos indígenas.
“Começamos a nos reunir por ser o local do programa de iniciativa público-privada que apoia estudantes indígenas, o Rede de Saberes, dentro da instituição, e principalmente porque quando estamos juntos nos fortalecemos, somos nós mesmos, nos sentimos em casa”, explica a líder, que veio da Terra Indígena Limão Verde, localizada a quase 200 quilômetros de Campo Grande.
As pautas trazidas pela jovem de 23 anos são constantemente urgentes para quase todos os estudantes indígenas matriculados na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), como: acesso ao vale-transporte, documentação para conseguir auxílio permanência, participação nas assembleias estudantis, informações a respeito do vale-alimentação, aquisição de internet ou xerox das disciplinas, dentre outras.
O espaço físico é tido como uma pausa nas dificuldades em permanecer na universidade, tanto para quem está chegando quanto aos que estão há mais tempo pelo campus da UFMS, em Campo Grande.
“O que nos mantém é o esforço dos nossos familiares e aldeias, porque os auxílios previstos pelas legislações são incertos, estamos sempre na incerteza de como vamos pagar o aluguel, como vou comer nesta semana, será que amanhã vou conseguir ir ao estágio? ”, explica Iara Campos, acadêmica indígena do curso de enfermagem.
Moradora de um município vizinho à Campo Grande, Marília Gabrielly Marcelino depende da ajuda de amigos para assistir às aulas do curso de Engenharia Ambiental. A prefeitura de Sidrolândia, localizada a 50 quilômetros da Capital, oferece translado aos estudantes somente nos períodos da manhã e tarde.
Insegurança em números
Os desafios citados pelas jovens estudantes, conforme Priscila, ocorrem desde o ingresso das primeiras turmas da Lei de Cotas e se agravaram a partir de 2018 com os cortes de bolsas realizados pelo Governo Federal. “A alegria de ver o nome na lista de aprovação tem sido breve para muitos de nós, que não têm condições de se manter fora da aldeia”, detalha a líder dos acadêmicos indígenas.
A insuficiência dos benefícios que auxiliam a permanência dos acadêmicos indígenas é confirmada nos números disponibilizados pela Ouvidoria da UFMS, para a pauta desta série especial selecionada pelo 4° Edital de Jornalismo de educação, da Jeduca (Associação Brasileira de Jornalistas da Educação), em parceria com o Itaú Social, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Dentre os auxílios mais importantes, pela continuidade e valor, estão: auxílio alimentação (R$250,00), moradia (R$400,00), permanência (R$400,00) e MEC Bolsa Permanência (R$900,00).
Em contraste ao ano de 2016, em que o MEC concedeu 75 bolsas permanência dentre as 94 pessoas indígenas matriculadas na UFMS, este ano nenhum indígena em todo estado Mato Grosso do Sul teve acesso ao benefício. No ano passado (2021), apenas 1 dos 86 acadêmicos indígenas conseguiu receber.
A insegurança do grupo também é visualizada em números como do auxílio alimentação: Dos 94 universitários indígenas matriculados em 2016, 27 foram atendidos; já em 2021, 3; e em 2022, dos 102 matriculados, somente 2.
Permanecer é desconstruir
Primeira acadêmica indígena a conseguir se formar em Direito pela UFMS, curso fundado em 22 de dezembro de 1995, Priscila ingressou na graduação em 2018 pela Lei de Cotas com o apoio da família e da sua comunidade.
“Sou fruto da Lei de Cotas e tenho orgulho de falar isso. Sem as cotas eu, provavelmente, não teria entrado no ensino superior, porque eu venho de uma formação em escola pública, indígena e da zona rural. Não tem como concorrer com estudantes de escolas particulares. A Lei de Cotas promove a isonomia ao prever a nossa entrada”, pontua.
O ano em que ingressou é marcado por uma mudança significativa no acesso ao ensino superior pelos povos indígenas: foi quando a UFMS passou a exigir o Rani (Registro Administrativo de Nascimento Indígena) emitido pela Funai (Fundação Nacional do Índio), ou uma declaração da comunidade confirmando que o candidato indígena resida na aldeia para efetivar a matrícula em qualquer curso superior.
“Nas edições anteriores, mesmo com a Lei de Cotas, o sistema era frágil porque exigia somente a autodeclaração e, com isso, foram registradas inúmeras fraudes. Isso mudou há poucos anos para nós, indígenas, e também para pessoas pretas, que passaram a ter bancas específicas”, explica.
A acadêmica também foi uma das primeiras mulheres autorizadas a sair da aldeia para estudar. Filha de um cacique, teve de lidar com a resistência da mãe para se tornar universitária na Capital. “Ela sempre me apoiou em tudo, aprendi a gostar de estudar com ela, que sempre leu para nós em casa. Mas, naturalmente, existia o medo por eu estar sozinha em uma cidade sem nenhum parente – da família ou aldeia. Após várias reuniões com nossa comunidade, minha mãe autorizou. Logo depois ela também voltou a estudar e está terminando enfermagem”, conta.
Ser uma indígena em um curso tão tradicional, como Direito, em uma instituição pública foi um choque cultural com altos e baixos.
“Minha turma me recebeu muito bem, desde o começo os colegas foram respeitosos e vinham me perguntar como eu preferia que me chamasse, quais termos são racistas e me deixavam à vontade para esclarecer sem constrangimentos. Contudo, infelizmente, alguns profissionais já não souberam lidar com essa diversidade dentro da universidade e houve momentos tensos, de eu ter que ouvir que indígenas não têm capacidade civil, por exemplo. Um conceito superado com a revisão de 2002 do novo Código Civil, mas que ainda persiste por alguns juristas”, desabafa.
Mulher, indígena e acadêmica
As dificuldades vividas em diferentes circunstâncias não a impediram de explorar ao máximo o que a graduação lhe oferecia, como participar da recém-lançada Clínica Jurídica e acompanhar atendimentos na comunidade ribeirinha do Passo do Lontra, no Pantanal, quando conheceu o trabalho da Defensoria Pública da União (DPU) e se tornou estagiária de uma defensora.
Pouco tempo depois, foi contemplada com uma bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) voltada à pesquisa de povos indígenas e começou a viajar e conhecer outras aldeias de Mato Grosso do Sul. Ao chegar nesses locais como uma mulher, indígena e acadêmica, Priscila sentiu o quanto estar no ensino superior era algo relevante para ela, sua comunidade e também às outras etnias.
“As crianças me recebem, seguram minha mão e dizem que eu tinha conseguido sair para estudar, e aí eu falo que elas também vão conseguir. É algo que elas ouvem das famílias delas, que uma indígena está na universidade. É uma questão de representatividade, estar lá não é somente uma conquista pessoal, mas para os povos indígenas”, diz.
A jovem indígena estudante de Direito ficou conhecida entre as aldeias e ela está, por isso, constantemente, em eventos e encontros com jovens indígenas de todas as etnias para falar sobre a universidade, formas de acesso, quais dificuldades, possibilidades e como fazer dar certo.
Covid, vacina e desinformação
A autoridade e respeito adquiridos pela universitária nas aldeias têm colaborado com o trabalho de esclarecimento da importância da vacinação contra a covid-19 entre os indígenas, um dos principais públicos impactados pelas fake news.
“As mensagens de desinformação sobre as vacinas são produzidas sempre remetendo à dor, abandono e tragédias já vividas pelos povos indígenas e isso, infelizmente, colaborou e colabora, ainda, com a resistência em se vacinar”, ela comenta em um vídeo produzido para as redes sociais.
Assessora jurídica do Núcleo de Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica da Defensoria Pública de MS, desde 2019, Priscila foi a primeira servidora a se vacinar, em janeiro de 2021. Priscila entrou na lista prioritária, na época, por frequentar assiduamente sua aldeia.
“Faço parte do conselho, participo das reuniões, das decisões e tenho direito ao voto. Quando a covid chegou nas aldeias Terenas foi uma tragédia. Em 48h morreram 8 indígenas. Sentimos muito pela perda dos nossos idosos, que são as pessoas que passam os ensinamentos da nossa cultura. Vários não resistiram”, recorda a aldeã que participou da campanha de busca ativa de indígenas para a vacinação.
Os próximos 10 anos
As últimas semanas do curso de Direito encerram com as emoções da insegurança com a vida profissional, prazos do TCC, ansiedade para a colação de grau e organização para encerrar a liderança no Movimento Estudantil Indígena da UFMS…Leia mais direto da fonte dessa notícia: https://primeirapagina.com.br/educacao/em-quase-30-anos-de-existencia-de-curso-indigena-e-a-1a-a-conseguir-se-formar-em-direito-na-ufms
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